Cultura

Quais leituras é possível fazer do filme Mãe?


O filme “Mãe”, do Darren Aronofsky, é o típico filme que caça referências. Ou seja, você vai na sala de cinema e sabendo que ele é inspirado em uma série de passagens bíblicas você leva a lupa e fica procurando o que ele está falando, que tipo de leitura ele está fazendo, como se fosse um jogo para ver quem pega mais referências e releituras, e quem é o primeiro a desistir, quem é o primeiro a levantar da sala de cinema e ir embora.
O que na minha sessão não foi incomum, muita gente levantou e foi embora.  Você sentia as pessoas bufando e reclamando como se fosse um filme sem sentido.
Não é um filme sem sentido, é um filme de altos e baixos. Já faz 24 horas que eu vi esse filme e ainda não sei dizer se eu gosto dele ou não. Não importa se eu gosto ou não, mas parte dessa minha indecisão se dá pela irregularidade do filme. Como se ele fosse demarcado entre a primeira passagem bíblica, o Velho Testamento, e o Novo Testamento.
É um filme pretensioso. Em determinados momentos você sente que não precisaria gritar tanto – “eu já entendi o que você está falando, não precisa dar tantas informações”. Não precisaria vir com tantas informações para nos fazer entender.
É um filme que choca. Muita gente saiu do cinema relatando um mal-estar, o que é um pouco a linha do diretor. Para quem assistiu a “Cisne Negro” ou mesmo a “Réquiem para um Sonho”, vê que é um diretor que pega passado. Ele carrega na tinta da dramaticidade no que a gente pode chamar de thriller psicológico na mesma linha, guardada as devidas proporções, do David Lynch aquela fronteira não muito bem definida entre o sonho e a realidade. No caso do sonho, um pesadelo.
O filme conta a história de um casal, interpretado por Javier Bardem e Jennifer Lawrence, que se muda para uma casa de campo. Eles estão reconstruindo uma casa, dá impressão que houve um incêndio ali, onde o personagem principal passou a infância. Eles estão reconstruindo aquilo quando recebem a visita de um médico que pensa que ali era um hotel. Ele pede para entrar e o marido, sem consultar sua companheira, recebe o médico, que acaba ficando. De repente ele trás a mulher, os filhos e quem acaba dando as ordens naquela casa são eles. Essa é a primeira parte do filme.
Os conflitos que decorrem disso são uma série de tragédias. A personagem da Jennifer Lawrence observa aquilo com um olhar nosso, um olhar de quem está indignado com como alguém consegue chegar na casa dela e dar tantas ordens como se fosse a casa da mãe Joana.
Quando essas pessoas vão embora ela descobre que está grávida, a releitura ali seria a do novo testamento, do novo que está vindo para salvar aquela casa, a alegoria do planeta, a salvação está a caminho. Mas, quando ela está prestes a ter esse filho, o mundo desaba novamente. Ela encontra todos os corredores daquela casa, mais ou menos como a história da humanidade, seria uma pretensão contar a história da humanidade e colocar todo mundo dentro de uma casa mas é assim que funciona. O filme é muito carregado nas referências mas foi assim que o diretor quis montar esse filme.
Então, nessa trajetória do casal que se muda, que acorda um dia de manhã e recebe visita de estranhos, depois eles expulsam essas pessoas da casa, expulsam os desordeiros do paraíso, e depois eles veem o que aconteceu com aquela criança, o que aquelas pessoas fizeram com aquela criança.
O que que dá para pegar na primeira parte é Adão e Eva, eles são expulsos do paraíso. Caim e Abel, o dilúvio, o sacrifício de Abraão quando ele dá o filho em holocausto mas é impedido em última hora, a gente vê a criação dos mandamentos que em algum momento passa a ser a bíblia, a parábola do filho pródigo. Você vê, também, em partes a parábola do bom samaritano, a gente tem a referência do apocalipse, dos falsos profetas do apocalipse e, principalmente, o olhar de Maria.
Você tem ali, tanto a construção da concepção de Maria, quando ela descobre que ela tem um filho e esse filho vai trazer a luz para aquele ambiente sombrio. Você tem ali Maria como uma instância de interseção. Ela está o tempo todo pedindo para o marido, como se fosse o marido a alegoria do pai, o deus, o criador, é quem tem a capacidade da criação, ela está o tempo todo intercedendo.
E nem sempre tomando as ações, como a Maria é retratada na bíblia. O colapso total é no começo de tudo ou um recomeço. Pega muito o caráter cíclico da reconstrução, da construção da humanidade. Ela sobrevive ao dilúvio e vem com o novo testamento. E as chagas de Cristo ali. Tem uma parte da casa que sangra. É um olhar sobre o que aconteceu com as religiões. Como as religiões são fundadas nessa história do sacrifício. E a gente tem esse olhar da mãe que está dizendo: vocês mataram o meu filho. Vocês vieram para minha casa e fizeram esse estrago.
Quando isso acontece, tem uma cena no corredor ali que a gente está vendo o que está acontecendo no mundo agora. A gente vê as guerras, as tensões, as guerras santas, as pessoas brigando em direção à salvação e na fila as pessoas se matando. A gente vê a violência policial. Tem várias referências do que está acontecendo hoje. Tudo isso dentro de uma casa. A gente nunca sabe o que é delírio dessa personagem.
Pensando um pouco fora da alegoria bíblica, o diretor está falando também da solidão da maternidade. A partir do momento que você tem a concepção, essa mãe ela sabe que o marido vai cuidar de outro projeto. Ele vai dizer, olha, eu vou escrever meu livro. Você vai cuidar dessa criança, eu vou receber as visitas, fazer festas. E você se vira aí.
Essa casa é o planeta. Essa mãe é a natureza que está vendo as pessoas arrebentarem o planeta que foi dado para elas como um espaço de convívio e na verdade é um local que a gente transforma em destruição. Em busca de uma verdade a gente está destruindo esse planeta, essa harmonia. Vai precisar ser expulso do paraíso de novo? Que horas isso acaba? Qual é a paciência que esse criador tem para essas pessoas enquanto elas não se matam ali embaixo?
Então, são perguntas que você se faz quando você sai da sessão. O filme brinca com todas essas referências. É um filme muito pesado. Eu já falei isso de outros filmes. O próprio diretor falou é um filme roda gigante, você vai lá se sentir mal, pensar e criar debates a partir disso. Não é um filme que você vai se divertir, se você quiser se divertir vai assistir pica-pau que é o que está passando também.
E minha dica é veja o filme ou não, mas levem as caneleiras. Não diga que eu não avisei. Um abraço e até a próxima.

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