Democratização da memória histórica e as ilegítimas homenagens à ditadura.

Quando a Lei da Memória Histórica chegou, no ano dois mil e sete, a Espanha inteira estava lotada de simbologia fascista, em cada cidade: monumentos, nomes de ruas, nomes de praças. O fascismo não tinha morrido ainda, continuava cercando a população. Por Víctor David López, Madrid.

 

 

Por Víctor David López*

 

É pesaroso precisar de uma lei para fazer memória, para respeitar a democracia, mas a realidade é essa. A ineficiência espanhola neste momento é o melhor exemplo. Em mil novecentos e setenta e cinco acabou a ditadura do General Franco – o regime militar estabelecido depois da Guerra Civil, que começou após o Golpe –. A Guerra Civil também é conhecida como a Guerra da Espanha, porque não lutaram somente espanhóis: foi um conflito internacional com o apoio dos fascistas europeus ao General Franco e com o apoio das Brigadas Internacionais ao exército republicano. Foi um ótimo e atroz ensaio clínico para a Segunda Guerra Mundial.

 

Em mil novecentos e setenta e cinco começou, de forma meio bizarra, a transição democrática depois de quase quarenta anos. O ditador morreu tranquilo, na cama dele, sem muitos problemas. A nova Câmara de Deputados aprovou uma lei de anistia, esquecendo os crimes. É óbvio que a República não voltou – era a forma de governo anterior ao Golpe de mil novecentos e trinta e seis – : o que voltou foi a Monarquia. O povo não teve escolha. E ninguém respeitou a memória dos mortos, dessas quatro décadas de trevas. Quando a Lei da Memória Histórica chegou, no ano dois mil e sete, a Espanha inteira estava lotada de simbologia fascista, em cada cidade: monumentos, nomes de ruas, nomes de praças. O fascismo não tinha morrido ainda, continuava cercando a população. Faz dez anos que essa lei entrou em vigor. Temos mudanças, mas a um ritmo muito lento. Ainda há muito trabalho pela frente e, acima de tudo, muitos políticos –e muitas pessoas em geral– que nunca aceitaram a memória histórica.

 

A lei regulamenta –pelo menos no papel– por exemplo, a reparação moral das vítimas da ditadura, o desenvolvimento de princípios democráticos, a recuperação do histórico dos partidos políticos, das minorias, dos grupos de resistência, as indenizações, os trabalhos para identificação e localização dos cadáveres das vítimas, símbolos e monumentos públicos, entre outros conceitos. As instituições públicas, governos autonômicos e prefeituras, são os responsáveis dessas últimas obrigações. A Associação pela Recuperação da Memória Histórica continua pressionando os governantes.

Nos últimos meses a prefeitura de Madri vem trabalhando numa lista de nomes fascistas de ruas e praças da cidade, para serem substituídos. Parece simples, mas é trabalhoso, e possui curiosidades dramáticas. Na primeira listagem que a prefeitura encomendou à Universidade Complutense de Madri apareciam nomes de personalidades muito conhecidas nos âmbitos das artes e do esporte, porém relacionados com o Regime militar, como o pintor Salvador Dalí e o mais importante presidente do time Real Madrid, o Santiago Bernabéu. A polêmica não demorou nem cinco minutos, e a prefeitura teve que compor uma comissão independente de memória histórica para reavaliar o projeto. Os nomes controversos ficaram fora da lista final, centrada quase exclusivamente em militares do exército golpista.

 

Um dos principais problemas da cidade de Madri é o monumento Arco da Vitória. Da vitória dos golpistas. Da vitória dos que condenaram o país à guerra e à ditadura. A mesma avenida, uma das principais entradas da cidade, leva o nome de Avenida do Arco de la Victoria. Primeiro a comissão propôs a mudança para Arco da Paz. Agora a proposta é Arco da Memória, mas por enquanto a vergonha continua aqui. Gigante, ultrajante. Monumentos como o Arco da Vitória não facilitam a reparação moral das vítimas do fascismo. A sua existência, atualmente, é ilegítima segundo a lei da memória histórica e é uma injúria ao mundo democrático europeu. Ninguém imaginaria uma coisa assim na Alemanha ou na Itália. A Espanha chega, mais uma vez, muito atrasada ao encontro com a dignidade.

 

 

* Víctor David López (Valladolid, Espanha, 1979). Jornalista, editor literário e escritor. Colabora na Radio Nacional da Espanha e escreve no jornal El Español. Trabalhou nos jornais espanhóis As, Marca e La Razón. É co-diretor da editora madrilena Ediciones Ambulantes, especializada em literatura brasileira e sobre o Brasil. É autor dos livros “Maracanã, territorio sagrado” (2014), “¿Yo soy tu madre o tú eres la mía?” (2016), “Brasil salta a la cancha” (prólogo) (2016) y “Brasil, Golpe de 2016” (prólogo). Twitter: @VictorDavLopez

Um comentário

Os comentários aqui postados são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião do NOCAUTE. Todos as mensagens são moderadas. Não serão aceitos comentários com ofensas, com links externos ao site, e em letras maiúsculas. Em casos de ofensas pessoais, preconceituosas, ou que incitem o ódio e a violência, denuncie. Leia o nosso termo de uso.

Edu marcondes

20/02/2017 - 13h26

Por vicio de profissão – historiador – sou contrário a medidas que visem apagar símbolos ou nomes que no passado exaltaram acontecimentos ou “heróis” ligados a regimes autoritários, como a ditadura fascista de Franco, na Espanha, ou a ditadura militar brasileira. Por outro lado, defendo a contextualização histórica. Se há um Arco da Vitória, em Madrid, que carregue uma placa explicando que foi erigido para exaltar a VITÓRIA DOS FASCISTAS e a implantação da DITADURA. Se temos um Viaduto Costa e Silva, que seja explicado que o homenageado foi DITADOR no regime militar entre 1967 e 1969 ETC ETC.

Responder

Deixe uma resposta

Recomendadas