Garota Ocidental: o olhar estrangeiro sobre as tradições
Dica do Matheus Pichonelli para o Nocaute: é um filme que precisa ser assistido, mas deve permanecer o debate: como queremos olhar tradições diversas das nossas?
Por Nocaute em 30 de junho às 19h45*Por Matheus Pichonelli
Nesta semana eu assisti a A Garota Ocidental, um filme do belga Stephan Streker, que foi até muito elogiado pela crítica e que conta a história de uma garota paquistanesa, que vive com a família paquistanesa na França. Chega uma altura da vida em que chega o momento de ela se casar. É um casamento arranjado. Os pais colocam para ela uma opção. São três opções de garotos paquistaneses que moram no Paquistão e que ela vai conhecer pelo celular e pelo Skype.
O problema é que ela tem uma vida, uma vivência… ela cresceu em uma cidade francesa, ela tem os amigos franceses, os valores daquela sociedade estão incorporados nela, fazendo ali uma oposição entre a tradição e a liberdade de escolher, de se relacionar com quem ela quer.
O filme tem alguns aspectos interessantes, traz algumas discussões bastante interessantes, mas é um filme a que a gente precisa assistir com certo distanciamento e com olhar crítico porque ele tem alguns problemas.
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Primeiro, pela forma de abordagem, pela forma como essa questão tradição e liberdade é abordada. Em um momento em que você tem a Europa discutindo fechamento de fronteiras, você tem um discurso de xenofobia bastante insurgente, o filme peca ao fazer um contraponto que reforça muitos estereótipos.
O pai, que no fim das contas se transforma em uma figura opressora em relação à escolha da filha. E a filha não se parece como uma paquistanesa, ela se parece com uma garota francesa. Isso diz muito sobre as escolhas do diretor.
Quando você reforça isso você não avança em uma série de questões. Esse filme não está falando de terrorismo, está falando de tradição, de um olhar sobre este estrangeiro, mas está falando com um certo fanatismo. Está tratando a questão da tradição de uma maneira bastante… eu diria pouco generosa porque, quando você faz um filme desses, em um ambiente político tão conturbado quanto este, você precisa partir de algumas premissas. Você não pode abandonar um certo olhar de antropólogo sobre um país do qual você não faz parte, por mais que você conviva. Como se não existisse violência, como se não existisse uma série de opressões na sociedade ocidental, na nossa sociedade.
É um filme que tem que ser assistido, mas é interessante que essa discussão seja feita, inclusive depois que a gente tem contato com a obra.
Mas, já que para tratar dessa questão de casamentos arranjados e de contrapontos entre liberdade e tradição, tem um filme chamado Tanna, que concorreu recentemente a melhor Oscar de filme estrangeiro. É uma produção australiana que foi rodada na ilha de Tanna, um país da Melanésia. E ali você tem uma tribo em uma sociedade tribal que tem esta questão que não é só um casamento arranjado, mas é um casamento proibido entre a protagonista e um outro personagem.
A abordagem desse filme é me pareceu mais interessante porque a certa altura essa sociedade tribal traz para dentro desse debate um debate na sociedade dita moderna, ocidental, livre, liberal. Sobre casamentos arranjados, em determinado momento, tem referências muito claras à forma como se dá o casamento na monarquia britânica.
Você acaba, em vez de afastar duas culturas aparentemente diferentes, você consegue se aproximar e observar alguns traços de uma tradição nossa também naturalizadas e também assimilada, mas com verniz de modernidade, que não é só parte de uma sociedade que a gente não compreende, que a gente está olhando com distanciamento.
E quando a gente olha com distanciamento, às vezes o problema, como acontece nesse filme, é você brutalizar. Você diz “olha, os brutos, selvagens estão aqui”. E não é bem assim. Quando a gente consegue fazer essa aproximação nas nossas próprias questões naturalizadas, é aí que o filme avança, pelo menos quando ele se propõe a levantar essas questões.
A questão ética e estética aí já é uma outra coisa. Mas a temática, a forma como você coloca, pode criar alguns ruídos, como é o caso de A Garota Ocidental, mas, enfim, fica aí o convite para que as pessoas assistam e tirem suas próprias conclusões. E que esse debate prossiga aí de alguma forma. É minha dica – ou não, para esta semana. Um abraço e até a próxima!
* Matheus Pichonelli é formado em jornalismo e ciências sociais e escreve sobre cinema.
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