Cultura

Filme de Selton Mello romantiza o abandono do filho pelo pai


 
Como eu tinha prometido no último vídeo, a ideia dessa semana era falar sobre ‘O filme da minha vida’, um filme dirigido por Selton Mello que estreou no começo do mês. Eu quis falar dele agora para que fosse um debate sobre o filme, eu vou tentar não dar spoiler, para quem não assistiu, mas a ideia era conversar um pouco com quem já assistiu.
Muitos amigos saíram encantados do filme, a crítica também, até onde eu vi, foi bem generosa com ele. Realmente o filme tem aspectos muito interessantes, o Selton Mello mostra que tem uma autoridade na direção, além de ser um grande ator, ele sabe trabalhar com cinema como poucos. Ele escolheu um elenco a dedo, muito bem escolhido, não só pela presença do Vincent Cassel, mas dá pra ver que ele bebeu no cinema francês, se inspirou muito ali. O personagem interpretado pelo Johnny Massaro, o protagonista, algumas vezes você olha pra ele e parece que você está vendo o Louis Garrel, que é um dos principais atores do cinema francês na atualidade. Então você vê que aquelas imagens de contemplação, de pessoas fumando na janela, as viagens.
O Selton Mello trabalha muito bem com a ideia de tempo e espaço, viagens de trem. O trem que chega, o trem de partida, a ideia do relógio, as alegorias, é um filme que se passa nos anos 60, um filme de época e que a fotografia dele é uma das melhores coisas que a gente vai ver no cinema brasileiro esse ano, dificilmente a gente vai ver algo mais interessante em relação a fotografia,  também nessa abordagem de alguns aspectos, alguns elementos daquela região de fronteira ali.
O filme é inspirado neste livro do Antonio Skármeta, que já tinha feito um livro que tinha inspirado há alguns anos o ‘Carteiro e o Poeta’. Ele entrou em contato com Selton Mello, queria que o livro dele fosse adaptado para o cinema, mas no Brasil. O título original é: ‘Um pai de cinema’, que é a história da relação do filho em busca do pai. A adaptação é bastante fiel. Agora, têm problemas, eu vi alguns problemas ali de abordagens em alguns temas muito delicados: as personagens femininas não tem uma subjetividade tão explorada pelo diretor, então, eu não vou dar spoiler, mas a sacada do filme é a seguinte: um filho que sai para estudar e mora numa cidadezinha numa vila, e quando ele volta, ele chega do trem e o pai embarca e desembarca ao mesmo tempo porque ele sai da família.
A história passa a ser o filho com a mãe e a busca dele para tentar entender porque o pai saiu de casa. Como ele constrói isso, essa mãe acaba se confundindo com a própria paisagem e você não tem uma subjetividade tão bem trabalhada como a dos personagens masculinos. Ela é uma espécie da mulher sofredora do Chico Buarque, que sofre em silêncio, que não reage, que olha a paisagem, que absorve aquele sofrimento, mas que não reage. E as duas personagens que o protagonista acaba se relacionando também não tem outras cenas com elas a não ser com outros homens.
O Selton Mello disse até em uma entrevista para o Yahoo que era essa a idéia do filme mesmo: você mostrar como era o mundo nos anos 60, sem necessariamente problematizar, deixar isso com o público, para que o público visse como eram as coisas no anos 60 e tentar identificar que ainda existe na sociedade hoje e fizesse a problematização por si. O problema é que quando você retrata uma época, você está falando em um contexto atual, você está trazendo esse filme para a atualidade, você não necessariamente precisa militar no filme, mas quando você opta por uma estética, a questão estética e ética acabam muitas vezes se confundindo porque você mostra um certo romantismo, como se tivesse uma certa beleza na perda e no abandono. O filme acaba tomando posição neste sentindo, mostrando como se esse sofrimento fosse ser explorado com uma certa beleza em uma paisagem quase idílica e com um certo romantismo.
O outro problema é que o filme atravessa a questão de relacionamento de adultos com crianças o tempo todo. Isso achei bem problemático, tudo bem que a gente conversa com um pessoal que era adolescente nos anos 60 e 70, eles contam de como você tinha alguns tipos de liberdade, como por exemplo: crianças que eram iniciadas sexualmente em prostíbulos. O filme tem uma cena no prostíbulo. Os alunos desse protagonista que querem conhecer o prostíbulo da cidade vizinha. Só que quando você reconta esta história, se você carrega demais na tinta e mostra aquilo como um encontro bonito, como se não tivesse alguns tipos de transtornos desenvolvidos por ali, de novo o filme não tem obrigação nenhuma de fazer uma sociologia daquele contexto, mas quando ele mostra isso como um encontro natural e romântico, um encontro de suspiros e beleza, ele deixa de demonstrar que inclusive o livro é um pouco mais agudo nesse sentido, ele mostra que, por exemplo, neste prostíbulo na história as pessoas que trabalhavam lá eram índias, então têm uma certa denuncia social de uma exploração de uma classe por outra, de um gênero por outro e étnica de quem são os exploradores e quem são os explorados.
Você mostrar isso como uma coisa bonita, normal e naturalizada mesmo que isso fosse recorrente naquela época, mas você contar hoje com essas tintas, com esse verniz de embelezamento eu acho muito problemático, por que você acaba retratando algo que não problematiza isso, você não deixa com o público. Quando você embeleza a cena você toma uma posição sim. Então, essas são as minha principais críticas: a busca desse filho pelo pai é a busca de um filho por um herói, o filme se encaminha nesse sentido, apesar do abandono, o filho entende o lado do pai, por que é uma sociedade que passa muita a mão na cabeça dos homens, que no fim, estão no centro de uma história de abandono. Isso não é bonito, isso não é legal, isso não é romântico.
Apesar do filme ter essa estética, esse tratamento, essa linguagem de novo muito bonita com a relação do tempo, a relação do espaço a relação de amadurecimento desse adolescente, desse protagonista, ele está entrando na vida adulta, ele passa a ser o pai da casa, ao mesmo tempo que ele busca o pai original você deixa as personagens femininas de lado e você cria essa relação que continua passando a mão na cabeça do que no fim é um grande drama, uma grande tragédia.
O Brasil, a América Latina, a gente sabe, a história dos pais que deixaram suas casas por outros objetivos e as mães que cuidaram dos filho sozinhos, isso é uma questão central, uma questão sociológica central e quando você transfere essa temática para o cinema, se você não toma alguns cuidados com a estética que você usa em cima disso, você acaba reforçando alguns estigmas e acaba, de alguma forma, deixando muito claro quem domina e quem é dominado. Então, essas são as minhas críticas ao filme, mas é um filme que, enfim, é importante conferir, virou um assunto, as pessoas falaram, entraram em discussões, muitas discussões mesmo. O Selton Mello realmente se encaminha para essa maturidade como diretor, além de ser um grande ator. É um filme que rende um debate, isso já vale muito no cinema brasileiro atual. É isso, até semana que vem.

Notícias relacionadas

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *