Comportamento

A era do juízo instantâneo faz do jornalismo um ramo da arqueologia


Esse tempo sombrio que atravessamos no Brasil é o tempo da justiça sumária, definitivamente.
Ela está longe de ser um problema apenas do sistema judicial, capturado desde a eclosão da Lava-Jato por uma sanha punitivista, um ânimo justiceiro que atropela uma infinidade de garantias legais e procedimentos processuais.
A justiça sumária já está cravada na própria alma das pessoas, converteu-se em impulso mecânico, automático.
Um vídeo surge nas redes sociais, mostrando um sujeito dirigindo um veículo no contrafluxo de centenas de skatistas, e atropelando alguns deles.
Em poucos segundos, está formada uma rede nacional de opinião taxativa, pedindo cadeia ou coisa pior ao atropelador, sem a mínima dúvida sobre as suas circunstâncias.
No dia seguinte, um outro vídeo mostra o mesmo sujeito sendo atacado por skatistas e fugindo apavorado pela contramão, para livrar-se do ataque.
Registros demonstram que esse segundo vídeo foi gravado antes do outro, o dos atropelamentos.
Ele apresenta uma óbvia atenuante para o delito cometido pelo atropelador, mas, como o sujeito já foi condenado sumariamente, a maioria dos justiceiros prefere fechar os olhos para o que viu. Não reforma, nem em parte, a sentença inicial.
Assim tem sido com absolutamente tudo que entra no debate público, nesta era de difusão instantânea e vertiginosa dos fatos.
Ela relega o papel tradicional do jornalismo, de apurar e interpretar os acontecimentos, a um ramo da arqueologia, senão da paleontologia.
Quando o conjunto dos fatos é montado – ou SE ele é montado, porque o próprio jornalismo há muito se desinteressou de investigar -, ele já não serve de nada, para orientar o juízo no presente.
A opinião pública está formada e consolidada, e para não ir contra ela, a ampla maioria prefere investir contra os fatos. Prefere negá-los, fazer de conta que não existiram.
Chama-se a isso, atualmente, com pertinência, de pós-verdade e não resta dúvida de que se trata do maior problema da informação contemporânea.
Até porque não é possível desacelerar o ritmo alucinante do tempo, nem conter a explosiva expansão dos fatos em circulação.
Mas não são apenas a informação, o jornalismo, o debate público, as opções políticas e, por consequência, a democracia que ficam ameaçadas nesse quadro.
São também a ética, a consciência, o mais mínimo senso de equilíbrio e julgamento, que são as bases para a produção da efetiva justiça.
A utopia do jornalismo sempre foi a de produzir um mundo tão informado que a consciência das pessoas se expandiria ao limite, e produziria o entendimento, a cooperação e a paz.
Pois agora esse mundo superinformado existe, produz o oposto disso e põe em dúvida se o jornalismo ainda serve para alguma coisa útil.
Isso pode ser bom para Zuckerberg. Mas sepulta o legado de Gutemberg.
 
 

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